quarta-feira, 7 de maio de 2014

A História do sapo-boi em Canoinhas

                    O SAPO QUE NÃO ERA BOI
 
“Em comunicação, boatos valem fatos”. (Elmo)
        Junho de 1995, Canoinhas, planalto norte de Santa Catarina, madrugada de sábado no distrito do Campo D’Água Verde, em rua próxima nos fundos da escola local.
       Os cães que guardavam a casa de dona Estefânia, viúva solitária que residia por ali, tornaram-se inquietos, impacientes, irritados com alguma presença desconhecida, daí que não paravam de latir e de encostar as patas dianteiras na grade de metal na tentativa de ultrapassá-las. O que ou quem os atemorizava?
      A velha senhora levantou-se com dificuldade do leito, acendeu as luzes por onde passava e foi até a janela da cozinha, momento em que arredou as cortinas, pôs os óculos e tentou divisar alguma coisa lá fora, mas nada viu.
     Descontente em não solucionar o mistério, apanhou a lanterna de oito pilhas que mantinha na gaveta do armário e saiu porta afora para sanar a curiosidade de veterana mulher.
     A essas alturas, os cães ladravam de forma incessante e, quando viram dona Estefânia por ali, camisola branca e lanterna acesa em punho, aumentaram as manifestações de ferocidade. A mulher, embora apreensiva com a situação, abriu o portão e permitiu que apenas um dos seus cães a acompanhasse até uma vala do outro lado da rua, ladeada por volumoso capinzal.
     O facho de luz da potente lanterna focalizou exatamente o local onde o cão não parava de latir, momento em que um grande vulto saltou do capinzal e se lançou em direção à profunda vala, e a mulher pôde ouvir o impacto de um corpo volumoso sobre a água que circulava pelo úmido local.
     Tomada pelo medo, dona Estefânia saiu imediatamente do lugar, entrou em casa, quase sem ar, e dirigiu-se ao telefone da sala; discou meio trêmula o 190, com o coração acelerado e, quando foi atendida, disse aos gritos:
      - Por favor, seu polícia, venha logo! É uma emergência. Tem alguma coisa estranha na valeta aqui perto de casa. Depressa, pelo amor de Deus!
      Identificado o local do chamado, uma viatura policial, em questão de minutos, chegou ao local. Dois policiais saltaram às pressas do veículo e se dirigiram até a dona da casa para ouvir detalhes sobre o caso e dar início à investigação.
      Quando inquirida, a veneranda dama explicou o que houve, justificou a solicitação e apontou para a densa vegetação onde viu a estranha criatura. Os dois agentes da lei indagaram sobre o quê, na opinião de dona Estefânia, poderia ter aparecido naquele lugar, àquela hora, e a mulher apresentou a sua versão:
       - Acho que foi sapo, e dos grandes. Um sapo gigante, do tamanho de um boi. Foi isso, um sapo-boi, tenho certeza!
       A declaração do avistamento de tal aberração percorreu as ruas do distrito e, como rastilho de pólvora, ganhou a cidade e sua explosão espalhou fragmentos de versões pelo mundo afora. Um sapo-boi, no Campo D’Água Verde, era só o que faltava! Houve um pipocar de notícias, boatos, fofocas e outros processos de comunicação; a mídia se encarregou de alimentar a curiosidade popular com notas e recados permanentes sobre o suposto batráquio e as repercussões de sua mal explicada presença.
       Um grupo de salvamento local foi acionado e deslocou-se, na manhã seguinte, para iniciar as buscas com a intenção de capturar o fabuloso anfíbio, mas nada, absolutamente n-a-d-a foi encontrado. Provavelmente, o raríssimo espécime da fauna brasileira escondeu-se no meio do capinzal interminável, impressão dos humoristas de plantão, no sentido de livrar-se do assédio das câmeras, máquinas fotográficas, microfones, autógrafos e público em geral.
       Após dois dias, surge uma notícia bombástica de que o precioso espécime havia sido finalmente capturado e se encontrava acondicionado numa grande caixa de madeira, nas dependências de um ginásio de esportes local, sob vigilância permanente das autoridades, aguardando a chegada de especialistas do IBAMA que dariam destino correto ao animal. Filas se formaram diante do prédio, na esperança de uma oportunidade de ver o fabuloso sapo-boi do Campo D’Água Verde. Providências foram tomadas para uma breve visitação, diante da pressão popular, e um furo foi aberto na caixa, para que a multidão, ao passar em fila, pudesse conferir a inusitada presença. A orientação dada, antes do início de verdadeira romaria, foi que não era recomendável aproximar muito o olho da abertura, pois o animal, enfurecido no cativeiro, poderia arranhá-lo.
       E todos os que passavam pela experiência, de qualquer forma, constatavam a presença do animal e comentavam com exclamações, tais como:
       - Bicho feio! Não é coisa desse mundo.
       - Quase me atacou o danado!
       - Mugiu que nem boi, mas parece um ET.
        A tentativa de encerrar o caso com a captura do suposto animal não surtiu o efeito desejado, e o mito seguia seu caminho fortalecendo-se com o imaginário popular. Uma segunda estratégia local foi elaborada com a produção de um programa radiofônico, em horário de grande audiência, sábado pela manhã, para esclarecer, em definitivo, a população sobre o rumoroso caso. Foram convidados dois biólogos especialistas para uma entrevista, bem como um engenheiro agrônomo com experiência na região norte do país. Havia grande otimismo no ar de que finalmente o assunto sapo-boi seria encerrado naquela ocasião.
       Naquele momento histórico, o vigoroso animal já havia sido visto por centenas de pessoas e sua estatura oscilava entre um e dois metros, sendo classificado como um carnívoro voraz, alimentando-se de cães, carneiros, cabras, aves e bezerros, cujos sumiços ninguém conseguia explicar, pois até frangos assados e pernis passaram a fazer parte do insaciável apetite.
       Durante o programa, campeão de audiência, iniciado às 10 horas daquele sábado, as perguntas foram acontecendo, sendo respondidas com a exatidão e a seriedade que a ciência determina, sempre encaminhadas pelos ouvintes via telefone. Finalmente, a pergunta essencial despontou:
       - Engenheiro Paulo Honda, o senhor que conhece bem a região onde vive o sapo-boi acredita ser possível para essa espécie sobreviver por aqui?
       Paulo não pestanejou e respondeu com segurança o questionamento:
        - Não é possível, pois o ambiente, a temperatura, as condições dessa região não permitem a sobrevivência dessa criatura.
       Era o que todos queriam e precisavam ouvir, mas, logo em seguida, o telefone tocou, e uma ouvinte do distrito manifestou, no ar, o pensamento predominante:
       - Vocês querem é esconder a verdade do povo. E daí que o sapo-boi ande por aí? Ele pertence ao povo dessa terra e somente o povo do Campo pode decidir o que fazer com ele. Por enquanto, o sapo-boi é nosso! Só nosso!
       As opiniões agora estavam divididas pró e contra a existência do tal sapo-boi, até que o mistério finalmente foi esclarecido por um pacato cidadão:
 
       - Veio a enchente e elas fugiram para as valetas.
       - Elas quem, seu Ribeiro?
             - Ora, seu repórter, as rãs do meu ranário, ali perto do rio Água Verde. Quando o rio enche, as danadinhas escapam, são lisas, só me dão prejuízo e vão viver nas valetas e banhados por aí.
       - Mas, seu Ribeiro, rãs são animais de pequeno porte, pelo que sei.
            - As minhas não. São bem grandinhas, da espécie touro e atingem o tamanho da minha mão.
       Essa história teve uma solução racional, pois mesmo confusa no início mostrou, no seu desenrolar, que a verdade sempre vem à tona, mas exige um esforço descomunal de quem a procura.
       Porém, alguém esteve num movimentado posto de combustível, próximo ao local original desta narrativa, no final de 2009, e fez ao frentista a seguinte pergunta:
       - Jovem, por acaso já ouviu falar da existência de um sapo-boi por aqui?                
   O atendente, surpreso com a questão, respondeu prontamente:
       - Eu nunca vi, mas conheço muita gente que jura ter se encontrado com o bicho, e o susto foi grande, seu moço! 

 A memória coletiva sacia a sede no manancial do mito.

 Esta história faz parte do livro: Olhos Flamejantes e outras estórias de Ederson Mota, que será lançado brevemente.

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